por foucault não ter tido a experiência cultural da colonização, como tivemos na américa-latina, esse filósofo acabou deixando de fora de suas pesquisas, sobre o modo de pensar e fazer política social, a questão dos aldeamentos, das reduções, das missões jesuítas. em seu “vigiar e punir” sua perspectiva é basicamente pensar a caracterização do delinquente a partir da noção de cidadão comum. a vigilância e a punição são as estruturas básicas encontradas em prisões, hospitais e escolas. claro que podemos pensar um aldeamento, uma redução, uma missão sob esta ótica, no entanto, teríamos que deixar muita coisa importante de lado, apenas para estar de acordo com as análises foucaultianas. como, por exemplo, a aculturação dirigida pelo regime tutelar. pois bem, de nossa perspectiva latino-americana podemos pensar que há mais elementos na estrutura de poder do que apenas vigiar e punir – atrair, territorializar e “proteger”. eu chamaria de “aldear e reduzir” – solidão e confinamento territorial. a gênesis da perspectiva “aldear e reduzir” parte da caracterização de uma particular forma de vida como selvagem e primitiva, a partir da caracterização de outra forma de vida como civilizada, moderna e cristã. da perspectiva da colonização, de nossa experiência indígena, saímos da condição ôntica da delinquência (foucault) e somos lançados à condição ontológica de selvagens e primitivos/as infantilizados/as que devem substituir suas atividades existenciais por tarefas tutelares.
um dos modos que os
jesuítas utilizaram, na época da colonização, para tirar os/as nativos/as do
ambiente das organizações sociais de floresta, “propícios aos maus costumes”
(leia-se “toda e qualquer manifestação cultural indígena”) foi a criação dos
aldeamentos – ora chamadas de reduções, ora chamadas de missões: ideologização
de que é preciso proteger indígenas de uma dominação mais violenta ao custo de
uma dominação mais “humana”. tal retirada tinha como propósito a constituição
de comunidades cristãs sólidas e duradouras às custas da subordinação à
aniquilação do culturalmente diferente. tal constituição tinha com base o
delírio de se refundar a humanidade a partir do indígena, matéria-prima humana,
orientada pelo cristianismo de seus primeiros tempos – inveja de que indígenas
seriam mais cristãos/ãs que os/as próprios/as cristãos/ãs. como exemplo de uma
dessas empreitadas foi a que os jesuítas chamaram de “república
comunista-cristã guarani” (ou os povos das sete missões no sul do brasil,
argentina e paraguai) mantida por mais de 150 anos (1610 a 1770) . a disposição
espacial desses aldeamentos fixavam-se os/as indígenas em torno de uma igreja e
isolam-se novos/as convertidos/as da “corrupção” dos colonialistas – cinismo
das boas intenções que instaura uma “proteção” por rejeitar um tratamento
horizontal ao culturalmente diferente.
o isolamento nos
aldeamentos era justificado pelos padres como proteção da moralidade e da
liberdade para com as tribos ainda não subjugadas. tal proteção
significava reduzir indígenas,
torna-los/as sujeitos submetidos aos padres, ao rei e a deus fazendo-os/as
“perceber” que seus atributos próprios são impuros e que tais deve se imaginar
sem eles. indígenas que recusavam e não acreditavam nas promessas de
“liberdade” dos missionários e de outros indígenas convertidos eram
estigmatizados como selvagens, feiticeiros/as, possuídos/as pelo diabo e
destituídos/as de coragem. deste modo, os aldeamentos, ou as reduções, eram
bolsões de isolamento para o exercício da conquista espiritual, da
tecnicalidade instrumental e a obtenção de resultados civilizatórios – tudo
isso sob a perspectiva infantilizadora de que indígenas não sabem cuidar de si,
devem ser educados, servidos e disciplinados, pois são semi-capazes e ingênuos.
tudo o que estava fora (em seu lançar-se sobre seu desamparo e incompletude
necessários) era a imoralidade, a poligamia, a embriaguez, o primitivismo, a selvageria,
o ódio aos colonizadores, o laxismo e a feitiçaria – por monopolizar acesso a bens, pessoas e relações. tudo o que
estava fora era um atentado bárbaro contra a cultura – o dentro assim se
tornava um fim em si mesmo. aldear e reduzir para um melhor vigiar e punir?
não, eu diria que aldear e reduzir para que vigiar e punir não fossem
necessários. o próprio olho que tudo vê não se daria a partir de uma
arquitetura panóptica, mas sim a partir de um território panóptico em si mesmo.
pois bem, mesmo após séculos
dos jesuítas terem sidos expulsos de suas reduções (primeira metade do século
xix), tal forma de isolamento (aldear e reduzir) ainda persiste até os dias de
hoje (século xxi) se infiltrando no modo de ser das instituições brasileiras.
podemos tomar qualquer uma delas como exemplo para tentar trazer à tona como
elas operam enquanto aldeamento. peguemos aqui as universidades. estas também
separam o fora e o dentro para além do vigiar e punir. o fora é tudo o que é
diletante, improvisado, e conhecimento falsamente autossuficiente – estas não
necessitam de vigilância nem de punição. o dentro é o virtuoso domínio da
literatura, a sobriedade argumentativa e diligente obtenção de resultados –
aldeado/a e reduzido/a conduzido/a ao automático sua conduta já que se decidiu
estar dentro (interiorização). seu próprio significado etimológico nos mostra
sua origem de aldeamento/redução/missão: universidade, do latim universitate, que significa totalidade,
conjunto, companhia, corporação, comunidade. um universo, sim, com cara de
ilha, pois exclui todo o pluriverso em expansão. tal exclusão não se dá porque
falte algum valor ao que está fora, e sim porque tudo o que está dentro desta
ilha já foi subjugado, reduzido, tornado sujeitos submetidos aos padres
(professores/as e pesquisadores/as), ao rei (o estado) e a deus (o conhecimento
profissional direcionado ao mercado de trabalho). tantos os aldeamentos quanto
as universidade representam uma instituição crucial para a boa ordem do sistema
colonial: a pacificação por persuasão, influência, atração e sedução. ambas
cumprem a função de “civilizar”, via a lógica da tutela, nós, indígenas,
selvagens e primitivos/as, e tornar-nos obedientes vassalos da coroa em
liberdade vigiada e em vida autorizada.
tal qual os
refugiados e refugiadas indígenas, seja ainda no mato como “isolados”
(sobreviventes do genocídio pelos bandeirantes), seja como “tutelados” em
reservas indígenas (confinados/as em simulacros de terra indígena), seja nas
periferias e favelas das cidades como “pobres” e “indigentes” (“integrados/as”)
que se viram obrigados/as a refazerem suas culturas uma infinidade de vezes na
ausência de suas organizações sociais em floresta; os anciãos das aldeias; os
velhos guerreiros de “corpos riscados” (que já mataram e comeram inimigos); as
anciãs “feiticeiras” (que já mascaram muita mandioca ou milho e fabricaram
muito cauim), aqui estou – amante da heresia. fora do aldeamento. fora das reduções.
fora da universidade. desconfiado e sem qualquer interesse em estar dentro,
“vigiando do alto dos morros a movimentação dos brancos”. pondo-me a rir com um
comportamento de fachada e sem controle, jocosamente desrespeitando toda
autoridade que me observa, que me censura e que tenta me seduzir. nenhuma
moderação grega, nem romana, muito menos temperança pós-tomista alguma. estar
fora significa não ter conhecimento nem de deus nem de ídolos. ao mesmo tempo
em que não se é tábula rasa, em que não falta nada, nem que há um vácuo
simbólico e epistêmico. na produção de conhecimento não aldeado, não reduzido,
portanto, na produção de conhecimento de modo amador (por aquele que se erotiza
como livre personalidade – soberania de caráter não adestrado), de modo que o
saber teórico morra (sufocado pela nossa ancestralidade indisciplinada) e
renasça como vontade louca (a pedagogia sem relação alguma com a ideia de
civilizar), não só realizo um ato contrário à boa ordem civilizacional, como
também cometo uma falha grave enquanto ausente da comunidade civilizada. já que
não há nenhum tipo de abstinência, sobriedade nem castidade em meu tipo de
epistemologia.
portanto, carpe dien, seja indígena!
léo pimentel,
enthūsiasmado por uma uainuy
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