(agitato)
o acaso d’eu ter sido nascido no brasil, me faz um brasileiro? curioso que “nascer” e “nação” remontem ao latim “natus”. o que faz com que, em termos etimológicos, eu seja direcionado a uma questão filosófica de ética negativa a qual, desde já, ambas me convergem para uma mesma obrigação de pertencer e, custe o que custar, persistir em uma “natureza” (“natus” de novo) intrinsecamente dolorosa e trágica – lembrando que a necessidade de natureza sempre supõe algo transcendente à ordem das necessidades factuais e arbitrárias. no entanto, há um indigesto fracasso em toda “mostração” da natureza: é sempre e infalivelmente orientada por temas morais. o que faz com que, ao mesmo tempo, “nascer” e “nação” guardem o caráter insignificante e efêmero delas mesmas: são entropias com pretensões a não desaparecer. é desde aqui que começo a me responder.
(vivace)
em termos oficiais e, portanto, normativos, minha “nacionalidade” é o vínculo jurídico-político que me une a um determinado estado – no meu caso por acaso, o brasil . ou seja, depois de terem me feito nascer (“jus sanguinis” – direito de sangue), me condenando à existência, a um conjunto de pessoas provindas de um mesmo lugar, a uma etnia, tradição, história e idioma, para que eu, involuntariamente, faça parte de um povo, agora, jurídico e politicamente (“jus solis” – direito de solo) me condenam à nacionalidade – já que ser trago à existência não contém mais sentido suficiente, sou lançado para dentro de quórum mínimo de sentido para que minha vida não seja reputada como absurda; inserção da existência em um sistema. ou seja, me obrigam a receber uma segunda herança arbitrária, na forma de dívida apenas, para que eu faça dela outra grande missão e razão/causa de meu viver e morrer: moralização (jus sanguinis) e jurisprudência (jus solis) das ideias de primitividade, de autenticidade e de “puro” precedendo a poluição – aquisição da nacionalidade originária (art. 12, inciso i da constituição federal do brasil).
(con fuoco)
brasileiro nato... nascido aqui, logo brasileiro... brasil: nascimento, nacionalidade e natureza. cidadão brasileiro! gozador dos direitos políticos de votar e ser votado! pois bem, mas, de qualquer modo, essa capacidade civil só me é dada como retribuição ao esquecimento obrigatório de que sou construído historicamente, por jus sanguinis, um filho bastardo. minha bastadia é histórica! história de coisa nenhuma para a memória oficial. por parte de mãe, sou filho de indígenas estupradas e assim também de africanas sequestradas em suas terras e feitas escravas para trabalhar por este solo. e meu pai, ou pais genealógicos, quem seriam? algum africano tornado escravo e arrastado para cá? algum indígena sobrevivente, integrado à ferro, fogo e jurisprudência? seria algum imigrante voluntário buscando melhores condições de vida? algum refugiado político? ou seria algum invasor e violador português? ahá! em todo caso, brasileiro naturalizado, ordinária (involuntário), extraordinária (voluntário), tacitamente (casando) ou infraconstitucionalmente (estrangeiro admitido no brasil durantes os primeiros cinco anos de vida)! impressionante que a eficácia jurídica dos conceitos de “brasileiro” e de “naturalizado” é proporcional às suas imprecisões existenciais. feliz ambiguidade dos termos e de suas respectivas correspondências que contribuem para torna-los vulneráveis e assim tornar esta minha investigação seu maior inimigo: não busco a “verdade” do “ser brasileiro”, busco a “precisão” do “ser brasileiro”.
(bruscamente)
a imprecisão é própria do “ser brasileiro”, pois é uma existência incerta inserida em um sistema de certezas oficiais para que, assim, sua “brasilidade” seja a única experiência, adquirida de tal forma, que se impossibilite qualquer avaliação. ou seja, que jamais se engane quanto aos critérios de seu existir nacional. um tipo muito particular de impossibilidade, pois é a evitação resultante do faltar-se ao conteúdo imediatamente avaliado (dado valor). é algo como um imperativo do tipo “amar coisas vagas e inexistentes sobre todas as coisas”. curiosa falta não destinada à insignificância, ou seja, a não ter a “que coisa” amar. pois não é falta de afeto, mas sim excesso de afeto e imprecisão a “que coisa” apreciar, dar valor. e, amando, excessivamente, se é sempre indiferente ao erro e ao engano – abster-se de avaliar. tal indiferença é o que assegura ao “ser brasileiro” seu maior poder: a invulnerabilidade indiferente ao conteúdo, ou seja, ao “que coisa” amar. para ser brasileiro, o amor (afeto máximo e, portanto, afetividade paranoica – afeto que sobrepõe o “isso não me agrada” ao “isso não deve existir”) basta a si mesmo. pois nada mais além dele mesmo se espera, goza ou aprecia. não há nenhuma experiência para se atormentar, se afligir e sofrer, muito menos se confirmação intelectual. o futuro, projetado como somente amor, substitui o passado, projetado como somente dor e como violações necessárias para o florescimento do amor. a história é substituída pelo amor e pelo esquecimento do que amar, torna-se mero acidente incontornável ao desenvolvimento na radiante nação brasil. eis o significado da expressão “brasil, um país do futuro”.
(maestoso)
assim sendo, não há brasis (múltiplas culturas ou múltiplos povos ou histórias clandestinas). muito menos um brasil, como um ente (objeto indeterminado) ou um ser (sujeito incerto), para o qual lhe é direcionado várias perspectivas concorrentes, como por exemplo a do/a indígena violada/o, a do africano/a tornado/a escravo/a, a do imigrante voluntário/a (burguês/a ou proletário/a) ou a do invasor português (aristocracia). o que há é um brasil, dado ao mesmo tempo como ente e ser, trago à existência desde uma única perspectiva: a da invulnerabilidade indiferente ao conteúdo (excesso afetivo – subjetividade intransponível), que instaura, por racionalização paranoica (jus solis) e sua práxis irracional violenta (respostas militares). ou seja, a da história oficial. e tal é a própria repetição, um eterno retorno do mesmo, de um ato artificial fundante, sugerido como ato sem alternativa (“natural”), “não-planejado” (“descobrimento”) realizado, oportunamente, sempre como efeitos de um esquecimento (liquidação mágica do passado) e de uma abertura incondicional ao amor (adesão paranoica ao futuro) que se basta em sim mesmo (aceitação do reino estabelecido sem o caráter usurpador ainda presente). e assim, para que eu seja brasileiro, devo esquecer, não avaliar (“dar valor”) e me entregar a um afeto que jamais se engana, para reduzir minha existência a uma mera condição repetidora do ato fundante – já que toda avaliação (sinal de abertura de um agir) e sofrimento (luta corpo a corpo contra os limites e pressupostos oficiais) podem cometer erros.
(com brio)
para minha presente busca de precisão ao o que é “ser brasileiro”, que querem que eu tome como missão de minha vida, a invulnerabilidade indiferente (a realidade nunca está errada), desmemoriada (reminiscência sem conhecimento) e amorosa (afetividade paranóica) do ser brasileiro, deve não mais guardar silêncio, nem se manifestar como ser oculto e “insondável” para dizer algo sobre:
(gravíssimo)
1. origem do mito chamado brasil: chegou-se em terras que não se conhecia antes. o que fazer? quem responde? um herói culto que quer conhecer? um padre que quer confirmar suas crenças? um aventureiro ou comerciante que quer enriquecer? um soldado analfabeto que obedece cegamente seu capitão aristocrata que está ali por mando e financiamento de seu rei? sim, quem responde?
1.1. princípio original: da certeza moral e do futuro como nostalgia dos jesuítas à sistematizar a ocupação do colonos civis e militares.
1.2. fixar um modelo para repetição: toda guerra levantada contra povos indígenas são justas, pois não há civilização sem subjugação e estupro. a humanidade é mesmo violenta e tem que prosperar violentamente. – mas o que é “humanidade” mesmo cara pálida?
1.3. repetição e cópia: é natural, “feito por deus”, os/as escravos/as. tanto é assim que pessoas tornam seus/suas próprios/as pares, escravas?
(grave)
2. rito, restaurar o mito: empreendimento da colonização “espiritual” (usar a vida contra os vivos) e territorial (territórios indígenas são terra de ninguém). como fazer?
2.1. focos iniciais de povoamento: engenhos de açúcar, fazendas de criação, sítios agro-extrativos, missões jesuítas, seringais, fazendas de café, de cacau, charqueadas, salinas e, por fim, postos militares. – mas, cara pálida, já não há aqui ocupações?
2.2. tribunais do santo ofício e proibição do tupi para o fortalecimento da língua portuguesa; – mas há aqui alguma heresia ou algum pecado, cara pálida?
2.3. resposta militar contra as resistências indígenas e a formação de quilombos; contra os movimentos messiânicos e os “banditismos” sociais; contra as revoltas populares, ligas camponesas e contra qualquer manifestação diferente da causa nacional oficial;
(adagio)
3. recompensas à eficácia material tornada metafísica da repetição: como garantir que o mito, mesmo sem os ritos subsequentes, perdure? independência!
3.1. receber um estado pronto de portugal: fugindo de napoleão, a família real portuguesa instala-se no brasil importando-o para cá; – ahá! então, cara pálida, o brasil saiu na frente de seus irmãos latino-americanos?
3.2. independência reconhecida mediante pagamento à inglaterra; – ah! outra originalidade brasileira!
3.3. incentivo imigratório para instalação de colônias estrangeiras no brasil; – é permitido ao estrangeiro tornar-se proprietário de terras assim como há um incentivo para o estabelecimento de colônias. – e onde fica, por exemplo, cara pálida, a colônia africana ou afro-descendente com a abolição da escravatura? ou mesmo um território indígena como coletividade regional autônoma ou uma entidade federada no brasil tornado república?
(adagietto)
4. viver no esquecimento secular: pós-princípio original (invasão e ocupação), pós-restauração do mito (independência) e pós-recompensas da repetição (brasil soberano). o que está havendo? ah... esses lobbies históricos...
4.1. criação do serviço de proteção ao índio (spi) – regime tutelar do índio – onde povos inteiros são considerados incapazes por si sós a destinar-se comunitariamente, a se dirigirem enquanto pessoas e a administrar seus bens – após uma série de denúncias a nível internacional;
4.2. leis trabalhistas “outorgadas” por getúlio vargas – pacificação messiânica-positivista da luta e das contradições de classes na qual somente a lei tem liberdade de ação em prol da convivência harmoniosa entre classes sociais;
4.3. “marcha da família com deus pela liberdade” – apoiada e incentivada pela igreja com o discurso civil “esperado” pelos militares e outros setores alarmistas da intelectualidade de que o brasil estava rumando em direção a uma “república sindicalista”;
4.4. o movimento pelas “diretas já” – joão figueiredo trabalha, pacientemente, no convencimento dos membros do sistema militar, este já quase morto pelo cansaço, conseguindo o ambiente necessário para a transição pactuada: nova lei eleitoral (eleições livres), seis partidos em substituição aos dois desde o golpe (sistema político democrático) e congresso independente;
4.5. impeachment do presidente fernando collor – a “inabilidade” de estimar os membros do congresso para a mobilização a seu favor, e a ilusão de uma comunicação direta com o povo que tinha tal presidente, ambas aliadas ao forte poder de articulação e pressão de seus adversários resultou a abertura do processo de impeachment;
4.6. até mesmo na “nova república”, do pmdb detancredo neves e josé sarney, passando pelo psdb de fernando henrique cardoso e chegando até o pt de luis inácio lula da silva e dilma russef, o brasil jamais se revolucionou. a única esquerda e direita, sejam elas políticas ou intelectuais que existem, é a que pulou para dentro de um mesmo coisificado como dado, o neo-liberalismo;
(con fuoco)
pois bem, ter um destino traçado pelo itinerário do jamais se revolucionar, do jamais padecer pelo não oficial, do jamais descentralizar-se etnicamente, e a partir disso, lançar essa minha questão existencial de ser ou não-ser brasileiro para dentro da problemática de “como se dá à existir filosofia no brasil”, tal somente pode se dar positivamente. ou seja, e/ou pelas vias políticas pactuadas (como por exemplo, ocorreu na independência em 1822 ou no fim do terrorismo de estado militar em 1984), e/ou pelas vias intelectuais da importação (estado pronto, 1808, estabelecimento de colônias, 1808 à 1888, e jovens que concluem seus estudos na europa e nos estados-unidos), e/ou pelas vias do amor que basta a si mesmo do/a brasileiro/a, produto da mestiçagem colonial, de um “a que se deve amar” vago e inexistente (afetividade paranoica que cria necessidades de liberação que coincidam com a história oficial do esquecimento). e assim, positiva, afirmativa, amorosa e, portanto oficialmente, a filosofia realizada desde o brasil não é, senão um novo meio imaginado por um grupo de imigrantes “naturalizados brasileiros” – ao ponto de se tornarem natos brasileiros, para perpetuar o ocultamento, a ferro, fogo e pactos (até ao ponto de uniões conjugais endógenas ou com outras famílias de renome) – das múltiplas realidades trágicas, negativas, pessimistas e avaliativas regionais sob uma ordem abstrata e melodramática nacional.
(con brio – para finalizar)
o acaso d’eu ter sido nascido no brasil, não faz de mim um brasileiro! o acaso d’eu ter sido mestre em filosofia pela unb, não faz de mim um herdeiro e defensor da filosofia! nem o brasil, nem a filosofia estão acima de meu pensamento!
léo pimentel (2014)
[versão em pdf do texto no scribd: http://pt.scribd.com/doc/208065617/O-fAlsO-prIncIpIO-da-brAsIlIdAdE-lEO-pImEntEl-2014]
Comentários:
Postar um comentário